terça-feira, 25 de agosto de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS (Vl )

FIGURAS POPULARES DAS RUAS

Toda a gente conhece a figura engraçadíssima de Evaristo,proprietário de uma drogaria,na capital,que no filme " O Pátio das Cantigas " é desempenhada por António Silva e frequentemente desafiada por Narciso, figura desempenhada por Vasco Santana,que o irrita sobremaneira com a popularizada frase " Ó Evaristo, tens cá disto '".
Ao ouvir tal frase Evaristo perdia as estribeiras e lançava sobre Narciso toda a espécie de objectos que tinha à mão,vendo-se este forçado a fugir.
Uma das características pitorescas da vida em Lisboa de há muitas dezenas de anos foi a dos tipos populares, espécie de " raridades " humanas que provocavam o gáudio,sobretudo dos habitantes mais jovens dos bairros onde viviam, pelas suas manias e taras.
Muitos, de génio irascível corriam atrás da rapaziada lançando-lhes pedras e paus quando eram chamados pelas suas alcunhas. Num livro * publicado em Lisboa,em l943, de entre muitas figuras típicas refere-se o " Cai pela pia abaixo ", alcunha pela qual era conhecido o dono de um pequeno estabelecimento situado na Rua da Palma ; o " Entala o bicho " alcunha de um proprietário de uma capelista no Largo na Graça, todos eles de irritabilidade fácil quando invectivados por outros.
Possivelmente a figura de Evaristo foi inspirada pelo conhecimento da existência e comportamento de certas figuras populares, em anos passados. Com o desenvolvimento das cidades, com o avanço do betão que vai cilindrando becos e ruelas, muita da tipicidade dos bairros vai desaparecendo, incluindo as suas figuras populares.
Há cinquenta anos, no bairro onde vivi cerca de trinta, lembro-me perfeitamente de certas figuras populares, que sem terem atingido, de forma alguma, a evidência das supracitadas marcaram bem o meu bairro, assim como a minha infância.
De entre várias recordo o " Mancão " ( Jaime de seu nome), pobre engraxador que para além desta actividade, exercida em tabernas e nas ruas, fazia uns biscates para ir subsistindo. Um deles, exercido com alguma discrição, era o de matar gatos recém-nascidos, deslocando-se para o efeito a casa de pessoas que se queriam ver livres de mais felinos e não sabiam como fazê-lo. " Mancão" colocava-os então num balde cheio de água.... Calmo e boa pessoa irritava-se contudo quando alguém em voz alta, o provocava gritando "miau !", imitando o soltar de voz dos gatos.
Outra figura típica era o " Sete Ceroulas" , trapeiro que dormia quer nas ruas quer dentro das escadas dos prédios, assustando as pessoas que regressavam a casa tarde ao tropeçarem nele.
Mas a figura mais típica que recordo é a de "Maria Charuta", mendiga que morava numa barraca e vivia de pequenos recados que fazia e de alguma comida que lhe davam. Um dia surgiu uma pequena epidemia que dizimou largas dezenas de galináceos nos quintais da zona. Foi a felicidade para " Maria Charuta "; todos os dias apanhava galinhas mortas nos caixotes do lixo da vizinhança, cozia-as a lenha numa lata grande colocada sobre tijolos e acompanhava as lautas refeições com excesso de vinho.
Ainda hoje a " vejo ",passeando feliz pelas ruas, dizendo a toda a gente : " Nunca comi tão bem na vida ! "

* "Evocações do Passado" de J.P.Carmo.

Publicado no jornal " Notícias da Amadora" nº l5O2 de l2 de Setembro de 2OO2.

sábado, 22 de agosto de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS ( V )

NA MORTE DE UM AMIGO

Armando era mecânico de automóveis. Nunca se adaptou a trabalhar em oficinas.Sempre o conheci a arranjar os automóveis,no largo, em frente de sua casa. Quando alguém indagava por um mecânico a indicação que recebia era invariavelmente: - Procure o Armando.
A sua figura era característica,alto,magro,boina na cabeça,fato de ganga azul,botas pretas; mesmo nos fins de semana era raro vê-lo vestido de outra forma.
Era o único mecânico de motores de iates que demandavam a Doca do BOM Sucesso.Se Armando não estava em pleno largo, de volta de um automóvel, era certo que se encontrava na doca, a trabalhar para os "camones", como dizia.
Ao longo dos anos os nossos contactos resumiram-se a pouco mais do que : - " Está lá, Armando ? O meu carro não pega..."
- "Vou já aí "- era sempre a resposta.
-" Armando, preciso que me leves o carro à inspecção".
-"Vou já aí".
Nunca trocámos muitas palavras para além das circunstanciais;contudo,ao longo dos anos foi-se estabelecendo uma forte empatia entre nós. No nosso íntimo sabiamos que eramos bastante amigos. Em Maio ouvi novamente:-"Vou já aí". Mas desta vez Armando acrescentou: -"Se for preciso arranjar o carro antes da inspecção,não o poderei fazer. Isto é uma porra, cada vez estou mais magro ! Levo-o só à inspecção".Passados três dias uma filha minha solicitou-lhe o mesmo.- " O Armando não pode mais trabalhar,nem sequer levar só o carro à inspecção" - disse a mulher
-" Como ele levou o carro do meu pai à inspecção,pensei que..."
-" Levou o carro à inspecção mas fê-lo por grande amizade para com o seu pai,pois na altura já não tinha forças. Compreenda,está a emagrecer imenso. Cancro no fígado".

Passados dias deu entrada num hospital;pouco depois veio para casa.- "O médico disse que não há nada a fazer ! Estava a ocupar uma cama...".
Fui visitá-lo a casa.Ainda me reconheceu: - Luis,ajuda-me a pôr o corpo noutra posição". O contacto das minhas mãos com o seu corpo onde já quase se não notava carne foi uma sensação terrível.Ali estava o meu amigo Armando a poucos dias do fim.
Numa época onde impera a crescente competição entre as pessoas, o egoismo, o "salve-se quem puder", é gratificante constactar que ainda pode existir grande amizade entre as pessoas ao ouvir a mulher dizer :-" Ele tinha dito que era o último jeito que lhe queria fazer antes de morrer ".
O meu amigo Armando já faleceu há alguns meses, mas ainda hoje me comovo quando penso que já não é possível marcar o seu número de telefone e ouvir do outro lado:"Vou já aí".

Publicado na Suiça,no nº l6 da revista " Pessoas" em Dezembro de 2OO4.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS (!V)


O ENGENHEIRO

No Largo o dia amanheceu,como sempre,calmo.Às sete da manhã já D. Irene e D. Ana iam a caminho do padeiro.O Senhor Jaime passeava o seu fiel perdigueiro,companheiro de tantas caçadas.Dos prédios saiam os moradores,quer para o trabalho quer para as primeiras compras do dia. Abriam-se e fechavam-se janelas e falas começavam a cruzar o ar.
Aos poucos a azáfama cresceria e os primeiros automóveis começariam a entrar e a sair do Largo através do Arco,considerado monumento histórico.A mercearia, a capelista assim como a cervejaria,abririam as portas mais tarde.Eram os três estabelecimentos comerciais existentes no Largo e razão de grande parte do corrupio de gente que começaria a surgir e se manteria até tarde.
Naquele dia,em plena Primavera,pelas quatro da tarde,em que pouca gente se encontrava na rua,entrou no Largo, através do Arco,um grande automóvel negro.Conduzido muito devagar,imobilizou-se bem a meio.Passados cerca de quinze minutos o chofer, impecavelmente fardado, saiu e abriu a porta de trás.Um homem de cerca de sessenta anos,meio calvo,engravatado,sem casaco, de camisa muito branca,saiu do carro e colocando-se a meio do Largo começou a mirar demoradamente os prédios circundantes, ao mesmo tempo que ia fazendo anotações numas folhas de um dossiê.
A cena não passou desapercebida a alguns moradores do Largo,embora,por vezes aparecessem funcionários da Câmara em atitudes um tanto ou quanto semelhantes.A cena foi-se repetindo com intervalos de cerca de três dias e o enorme automóvel negro, imobilizado bem no centro do Largo ia, aos poucos,intrigando os moradores.
- Quem será o indivíduo? -perguntavam.
- Isto é homem da Câmara -respondiam outros - Só olha para os prédios e toma notas.
- Quanto a mim é um vigarista - disse João.
João era uma figura bastante típica das redondezas.Reformado de uma metalomecânica, falava pelos cotovelos.Em qualquer conversa entre amigos introduzia tantos assuntos sem qualquer ligação entre si que a páginas tantas havia quem se irritasse.À noite frequentava a zona do Cais do Sodré onde travava conhecimento,por vezes,com pessoas cultas, sem rumo na vida,que eram a sua fonte de pretensos conhecimentos elevados.Muito arguto apanhava nomes e idéias citados por outros que, contudo, não sabia desenvolver.Lia toda a espécie de jornais e revistas que apanhava à mão,não lhe interessando se já eram antigos.Passados uns dois meses,quando o calor começou a apertar, os dois homens dirigiram-se pela primeira vez à cervejaria. Todos os olhares dos presentes incidiram sobre eles.
- Boas tardes.Arranja-me um gin tónico e uma cerveja aqui para o meu chofer,se faz o favor ?- pediu o homem da camisa alva.O proprietário desfez-se em sorrisos e serviu-os solícito, ansiando por meter conversa,saber quem eram e o que faziam.Os seus intentos sairam contudo frustrados pois os dois homens afastaram-se um pouco do balcão e mantiveram uma conversa reservada da qual o dono da cervejaria,o Senhor Antunes,só percebeu que falavam em prédios e em muitos milhares de contos.
Dias mais tarde os dois homens dirigiram-se à cervejaria:
- Ainda se pode almoçar?-Perante a anuência de Antunes o homem voltando-se para o chofer disse:
- José, vem buscar-me daqui a umas duas horas.
-Fique descansado senhor engenheiro.
Antunes rejubilou;o homem era engenheiro,tinha um carrão e chofer.Foi a partir daí que as visitas ao Largo se tornaram diárias.O engenheiro almoçava e à tarde o chofer vinha buscá-lo.
-Almoço sempre tarde. Tenho uma vida em que não paro.Compro prédios, construo, vendo-os...Há aqui alguns para venda?- perguntava e Antunes respondia o que sabia e o que não sabia.Um homem de negócios daquele gabarito,tão bom cliente,que só falava em milhares de contos enchia-o de vaidade.- Vou comprar aqui próximo um andar para instalar um escritório. Trarei depois algum pessoal do outro escritório - dizia o engenheiro. - Mas é perto de Penedono e em Bragança que estou a construir em grande. É aí que de momento estou a investir forte.
A convivência quase diária entre o engenheiro e Antunes ia estabelecendo uma crescente simpatia deste por aquele.Tentava servi-lo com o melhor peixe e carne que encontrava; com várias variedades de queijo e de vinhos.
-O Senhor Engenheiro é engenheiro...Tem alguma especialidade,digamos?
- Civil. Sou engenheiro civil,tirei o curso no Instituto Superior Técnico.Daí estar ligado à construção. Lembre-se do meu colega,o grande Duarte Pacheco- e riu-se.
Os almoços eram caros. Eram pagos pouco antes do chofêr chegar, sempre com notas grandes.Um dia pareceu atrapalhado.- Oh, Diabo ! Querem lá ver que perdi a carteira ?!
-Por amor de Deus ! Não se preocupe- disse Antunes.
José chegou pouco depois com a carteira na mão: -Ficou no carro- disse.A partir daí,e já tinham decorrido cerca de quatro meses desde o primeiro almoço, o engenheiro propôs a Antunes:
-Senhor Antunes,para eu não andar preocupado com a carteira, com dinheiro, o senhor importava-se que eu passasse a pagar ao mês ?Até posso pagar adiantado e depois acerta-se...- A idéia não desagradou a Antunes; perder um cliente daqueles é que não.
-Tu nem sabes o nome do homem e vais nisso? -disse-lhe a esposa.
João que ouvira a conversa não se conteve:- Senhor Antunes,então você não vê que o homem tem pinta de vígaro ?
- Tem o quê ?Devias respeitar os cabelos brancos da pessoa.Não vês que é um homem de grandes negócios?Anda sempre com um dossiê debaixo do braço...
-Você já viu o que contém o dossiê?-contrapôs João - Naturalmente contém fotografias de gajas nuas - acrescentou rindo a bom rir.
Um dia Antunes perguntou:- Senhor Engenheiro, qual é a sua graça? Desculpe fazer-lhe esta pergunta.mas às vezes até podem vir à sua procura...
-Souto Queiroz,um seu criado...
-Tem pinta de engenheiro e nome de engenheiro -disse Antunes à esposa - anda sempre a tomar notas...Lá no Norte tem cada empreendimento...
Nos dois meses que se seguiram os almoços foram pagos impreterivelmente no último dia de cada mês, sempre a dinheiro.
-É cumpridor - disse Antunes- sempre notinhas...
-Paga a dinheiro porque está proibido de passar cheques - afirmou João.
-Lá está você a atirar abaixo as pessoas.Que raio de feitio !
No fim do mês seguinte ninguém apareceu para pagar os almoços e durante dez dias tanto José como o engenheiro não deram sinal de si.
-Enfiaste a ursada !-disse João- Eu sempre desconfiei do tipo. Mas qual engenheiro,qual carapuça !
Antunes limitava-se a sorrir com um sorriso amarelo.Tinha confiado em demasia.Numa manhã José apareceu:- Peço imensa desculpa,Senhor Antunes por esta ausência,mas tivemos de ir para o Norte sem esperar. E, como sabe,não se podem perder milhares...Em nome do meu patrão,mil desculpas.
Antunes invectivou a mulher e todos aqueles que tinham posto em causa a honestidade do engenheiro.Este após ter voltado anunciou ter montado escritório em Algés de Cima mas continuaria fiel a Antunes.Requintou os seus gostos,os almoços eram cada vez mais caros e numa altura em que por uma série de curtas ausências e de pequenos desencontros já devia três meses de refeições telefonou a Antunes dizendo que se encontrava no Brasil;inesperadamente teve de ausentar-se.Grandes empreendimentos no Rio Grande do Sul precisavam da sua presença.Pedia desculpa e solicitava que José passasse a almoçar em vez dele.Quando regressasse liquidaria todas as despesas.
José mostrou-se mais exigente do que o patrão quer na qualidade da comida quer na dos vinhos.Foram dois meses em que parecia que o verdadeiro patrão era José.
-O seu patrão vai demorar-se muito? Está a investir,não? -perguntava Antunes.
-No Rio Grande do Sul e também nos arredores de São Paulo.Coisa de muitos milhões.Levou daqui dois economistas e um advogado.Muitos milhões,muitos milhões- explicou José.
De milhões não foi o calote do Engenheiro a Antunes, mas a dívida foi suficientemente grande para este amaldiçoar o dia em que,numa tarde de muito sol,um grande carro preto entrou no Largo,através do Arco histórico,parou a meio e dele saiu um homem de camisa muito branca,com um dossiê debaixo do braço...

Publicado na revista Pessoas Nº17, Março 2005

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

DIVULGANDO POESIA (V)

TOMAR PARTIDO

Tomar partido é irmos à raíz
do campo aceso da fraternidade
pois a razão dos pobres não se diz
mas conquista-se a golpes de vontade.

Cantaremos a força dum país
que pode ser a Pátria da verdade
e a palavra mais alta que se diz
é a linda palavra liberdade.

Tomar partido é sermos como somos
é tirarmos de tudo quanto fomos
um exemplo um pássaro uma flor

tomar partido é ter inteligência
é sabermos em alma e consciência
que o Partido que temos é melhor.

José Carlos Ary dos Santos

sábado, 11 de abril de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS ( III )

RODOLFO

O dia amanheceu sem núvens e com uma temperatura que deixava adivinhar excelentes perspectivas para as horas que se seguiriam.
Rodolfo abriu o olho esquerdo, o quarto estava mergulhado numa leve penumbra que o deixou distinguir perfeitamente quase toda a mobília. Seguidamente abriu o olho direito; Rita estava,como sempre, deitada a seu lado.
A janela do quarto encontrava-se entreaberta,o que lhe permitiu aperceber-se de que, com um pouco de sorte, uma ida até à praia seria bastante provável.
Não se esticou, encolheu-se e chegou-se ainda mais à companheira que há vários anos partilhava consigo os bons e os maus momentos da vida.Era bom sentir o calor daquele corpo ali a seu lado. Rita submetia-se a tratamentos de beleza duas vezes por semana e o seu corpo perfumado exalava sempre um suave e agradável odor.
A voz de D. Judite, a governanta soou um pouco mais tarde, como habitualmente : - O pequeno- almoço está no prato.Morninho...
Rodolfo fingiu não ouvir. Se se sentia tão bem encostado a Rita, para quê levantar-se ? Sabia que a governanta o deixaria ficar mais uns momentos na cama.
Da segunda vez a voz de D. Judite soou mais determinada : - Vá lá,nada de mandrice !Toca a levantar! Rita, não finja que não ouve!
Rodolfo foi o primeiro a levantar-se;espreguiçou-se e a custo dirigiu-se primeiro para o quintal da casa.Já totalmente desperto deparou com o gato da vizinha em cima do muro que separava os quintais.
Foi então que desatou a ladrar tanto que acordou a vizinhança .

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Divulgando poesia ( IV )

ILUSÕES DA VIDA

Quem passou pela vida em branca núvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem,não foi homem,
Só passou pela vida,não viveu.

Francisco Otaviano

Dando a conhecer ( I )

She lifts a thin gilt-edged volume from the patio table as if elevating the Host before the altar.
Its gold leaf and lettering catch the afternoon sun.It says Poem of Summer. Her face suddenly has a different look, the look of a visionary,an exalted religieuse.At the same instant a bird sings clearly and purely in the garden and the old lady seems to be almost young for a moment.
DOCTOR (reading the tittle):
- Poem of Summer ?

from: "Suddenly Last Summer" play by Tennessee Williams.
O livro que mais vezes li até hoje.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Divulgando poesia ( III )


GUEVARA

Não choro, que não quero
Manchar de pranto
Um sudário de força combativa.
Reteso a dor, e canto
A tua morte viva.

A tua morte morta
Pelo próprio terror em que ficaram
À sua frente
Aqueles que te mataram
Sem poder matar o combatente.

O combatente eterno que ficaste,
Ressuscitado
Na voluntária crucificação.
Herói a conquistar o inconquistado,
Já sem armas na mão.

Quem te abateu,perdeu a guerra santa
Da liberdade.
Fez brilhar na manhã do mundo inteiro
Um sol de redentora claridade:
O teu rosto de Cristo guerrilheiro.

Miguel Torga

11 de Outubro de l967 in DIÁRIO, X volume

- Também tu, Torga ?!

Divulgando Poesia (II )

CRAVOS

Com um cravo na boca
e uma rosa na mão,
- Chiça que me piquei !!

José Fanha

quarta-feira, 1 de abril de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS ( II )


O PIANISTA E O CÃO


" O Pianista " é um filme do realizador polaco Roman Polanski que apareceu nos cinemas de Lisboa há muito tempo. Como não sou grande cinéfilo não procurei vê-lo na altura,embora várias pessoas me tivessem dito tratar-se de um excelente filme.
Surgiu-me há dias a possibilidade de o adquirir na versão DVD e foi com enorme expectativa que o vi.Trata-se de um filme arrebatador que relata a terrível perseguição que sofreram os judeus polacos durante a Segunda Guerra Mundial na capital do país,Varsóvia,e em particular o pianista Wladyslaw Szpilman, que viveu na Polónia e que por ser judeu sofreu os horrores das perseguições nazis. Na cidade os judeus eram acantonados em zonas chamadas guetos a fim de serem controlados mais facilmente - embora usassem a estrela de David nas suas roupas - e deportados para os campos de concentração, dentro de vagões a abarrotar de pessoas,onde eram mortos nas câmaras de gás quando não morriam de fome, frio ou doenças.A perseguição aos judeus ao longo da História não foi só levada a cabo pelos nazis; em Lisboa, por exemplo, teve lugar uma grande matança no dia dezanove de Abril de mil quinhentos e seis, em que,segundo relatos da época terão sido mortos - muitos queimados vivos - para cima de três mil judeus.
Szpilman consegue fugir do gueto onde se encontrava, após ter assistido à deportação de toda a sua família para o campo de concentração de Treblinka,iniciando então a luta pela sobrevivência em fuga permanente pela cidade,sem nada para comer,por vezes adoecendo e sofrendo as agruras do frio intenso. Consegue não ser descoberto escondendo-se também com a ajuda de amigos que lhe dão guarida breve em suas casas,embora correndo o risco de serem fuziladas por abrigarem um judeu, ou em apartamentos vagos, em prédios à partida insuspeitos de albergarem judeus foragidos. Szpilman entra nos prédios a medo, subindo as escadas pé-ante-pé evitando fazer qualquer ruído que o possa levar a ser descoberto por outros moradores e denunciado aos alemães,sempre com a esperança de que um exército aliado, o russo, entre na capital e liberte os habitantes da ocupação nazi, o que vem a acontecer.

Dido não toca piano. Dido é um cão rafeiro que há anos foi abandonado em Carnaxide,nos arredores de Lisboa. Começou a aparecer numa praceta e cedo algumas pessoas se condoeram da sua sorte, dando-lhe um nome e distribuindo tarefas entre si para sua protecção. Há quem zele pela vacinação anual, pela desparasitação regular, pelo tratamento anti-pulgas periódico,por tudo o que se afigure necessário à sua protecção e bem-estar. Vivendo na rua tem passado anos ao frio e à chuva,abrigando-se durante a noite por todo o lado e até em casotas de cartão enquanto duram.
Dido não é um cão judeu mas também tem alguns inimigos,pessoas que o invejam. Já tentaram deportá-lo não para um campo de concentração mas para o canil municipal a fim de ser abatido. Até hoje em vão. Já recebeu ameaças de morte através de uso de arma branca. Já passou por momento delicado de saúde resolvido com operação quotizada por muitos.
À semelhança de Szpilman, o pianista judeu, Dido dorme agora clandestinamente num
apartamento,para o qual se dirige, ao cair da noite, pata- ante-pata,sem fazer ruído,ao subir as escadas, não vá ser deacoberto por algum morador do condomínio que o denuncie. De manhã cedo volta sorrateiramente para o seu território,a praceta, onde dá largas à sua alegria de viver.


Luis Florêncio Oliveira

- Esta história foi publicada na revista "Pessoas" que se publicava em Genève,Suiça, acompanhada de uma bonita foto do Dido e foi tema de um teste de português de alunos da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa.

-Actualmente Dido vive com donos maravilhosos num grande apartamento perto da praceta onde sempre viveu e visita frequentemente os seus amigos de sempre.

AS MINHAS HISTÓRIAS ( I )

LEITE COM TORRADINHAS

Aristides Inocêncio teve uma infância feliz: seu pai chegou a ser presidente da Câmara Municipal de uma vila do interior,durante vários anos,no tempo em que não era permitida a existência de partidos políticos,constando que a vida abastada que a sua família levava era devida aos anos em que seu pai dispusera da Câmara a seu belo prazer,sem oposição fiscalizadora.
Estando o presidente muito ligado às autoridades representativas,Igreja e forças de ordem,ninguém ousava levantar a voz sobre os boatos que por vezes circulavam quanto à sua honestidade à frente da edilidade,tanto mais que,dizia-se,um seu cunhado,residente em Lisboa,era figura de destaque da polícia política do regime.
Na vila,Aristides era um pequeno príncipe,mimado por muita gente.
Quando terminou a quarta classe,ao contrário do que seria de esperar,o pai encaminhou-o para a escola industrial e, uma vez esta terminada, enviou-o para França onde frequentou e concluiu um curso médio no ramo da engenharia.Por influência materna Aristides aperfeiçoou-se na língua francesa e após estágios em fábricas começou a trabalhar numa enpresa nos arredores de Paris.
Tendo-se livrado de prestar serviço militar,foi permanecendo em França e só após muita insistência da família decidiu regressar a Portugal. Contudo,os anos passados
fora tinham-lhe alterado a sua maneira de ser e aos pais surgiu-lhes um Aristides com hábitos diferentes e mentalidade liberal para a época,casado com uma francesa e disposto a seguir a sua própria vida.
Rumou a Lisboa,instalou-se com Marie,sua esposa,perto da Torre de Belém e procurou emprego.Não teve qualquer dificuldade de maior dada a sólida experiência adquirida no estrangeiro e o domínio da língua francesa,começando a trabalhar numa empresa situada na Azambuja. Habituada a trabalhar desde nova, Marie arranjou igualmente emprego.
Naquele tempo a presença de uma estrangeira numa localidade era motivo de grande curiosidade.Saber quem era,quem não era, ocupava largo tempo no dia a dia das pessoas até se descobrir a sua origem e actividade.Perto da casa de Aristides ficava a Avenida da Torre de Belém e nesta, junto à linha dos eléctricos, um café paredes meias com um cinema,hoje já desaparecido. Todas as noites a esplanada do café enchia-se de pessoas que,após o jantar,procuravam a cavaqueira até cerca da meia-noite e outras dezenas enchiam o café antes de se dirigirem ao cinema.
Se na esplanada havia imensa gente despreocupada que ria e comentava factos das suas vidas,assim como outros,havia igualmente uns tantos rapazes cujo único entretenimento era o de apreciar as raparigas e algumas senhoras que se dirigiam ao cinema.
Duas ou três vezes na semana Marie surgia,vinda da rua onde morava, de cafereira na mão,entrava no café e saía,dirigindo-se para as traseiras do cinema,para voltar cerca de meia-hora depos.
Não tardou que os "abutres" se apercebessem do estranho hábito de Marie e uma noite a seguissem de forma discreta.Viram-na entrar para um automóvel estacionado em local escuro e lançar-se nos braços de um homem que a aguardava. A partir daquele dia,logo que Marie surgia à esquina da rua,os rapazes apressavam-se em direcção às traseiras do cinema.
No Verão Aristides costumava passar pela Doca do Bom Sucesso antes de se dirigir a casa,vindo da Azambuja.Gostava de dar uns dedos de conversa a um grupo de homens que se reuniam habitualmente junto de uma das muralhas.
Num desses dias ficou a saber-se que uma cor de um azulado ténue que Aristides exibia nos lábios era devida a uma insuficiência de alguma gravidade numa válvula do seu coração.
- Os médicos aconselharam-me a não jantar como costumava fazer - contou- já há vários meses que a minha mulher, coitada, faz o sacrifício de ir à noite ao café buscar um leite muito bom que eles lá têm. A chatice é que tem de esperar largos minutos até que a atendam, pois é à hora do cinema começar. Quando chega a casa prepara-me leite com torradinhas e é esse o meu jantar. Já me prontifiquei a ir buscar o leite mas ela não quere que eu saia à noite, que me canse ou constipe.
Certa noite, ao chegar a casa com o leite e após ter demorado mais do que o habitual, Marie verificou que Aristides já preparara algum leite com a intenção de jantar. A televisão encontrava-se ligada; no tabuleiro colocado sobre uma pequena mesa em frente do aparelho só faltava o açúcar. Na cozinha,caído no chão,já sem vida,encontrava-se o corpo do marido.
Aristides nunca mais tomaria o seu leite com torradinhas.

Luis Florêncio Oliveira
Verão de 2OO4

P.S.-Esta história foi publicada na revista Pessoas que se publicava em Genebra,Suiça,no nº l5 de Setembro de 2OO4.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Divulgando Poesia ( I )

DO TEMPO

DEUS nos pede do tempo estreita conta!
É preciso dar conta a Deus do Tempo !
Mas como dar,do tempo,tanta conta,
Se se perde sem conta tanto tempo ?!

Para fazer a tempo a minha conta,
Dado me foi,por conta,muito tempo,
Mas não cuidei do tempo e foi-se a conta ...
Eis-me agora sem conta...eis-me sem tempo...

Óh vós que tendes tempo e tendes conta,
não o gasteis,por nunca,em passatempo,
Cuidai, enquanto é tempo, o terdes conta.

Ah! se quem esta conta de seu tempo
Tivesse feito,a tempo, preço e conta
Não chorava, sem conta, o não ter tempo.

Frei Castelo Branco (Sec. XVII)