quinta-feira, 13 de agosto de 2009
AS MINHAS HISTÓRIAS (!V)
O ENGENHEIRO
No Largo o dia amanheceu,como sempre,calmo.Às sete da manhã já D. Irene e D. Ana iam a caminho do padeiro.O Senhor Jaime passeava o seu fiel perdigueiro,companheiro de tantas caçadas.Dos prédios saiam os moradores,quer para o trabalho quer para as primeiras compras do dia. Abriam-se e fechavam-se janelas e falas começavam a cruzar o ar.
Aos poucos a azáfama cresceria e os primeiros automóveis começariam a entrar e a sair do Largo através do Arco,considerado monumento histórico.A mercearia, a capelista assim como a cervejaria,abririam as portas mais tarde.Eram os três estabelecimentos comerciais existentes no Largo e razão de grande parte do corrupio de gente que começaria a surgir e se manteria até tarde.
Naquele dia,em plena Primavera,pelas quatro da tarde,em que pouca gente se encontrava na rua,entrou no Largo, através do Arco,um grande automóvel negro.Conduzido muito devagar,imobilizou-se bem a meio.Passados cerca de quinze minutos o chofer, impecavelmente fardado, saiu e abriu a porta de trás.Um homem de cerca de sessenta anos,meio calvo,engravatado,sem casaco, de camisa muito branca,saiu do carro e colocando-se a meio do Largo começou a mirar demoradamente os prédios circundantes, ao mesmo tempo que ia fazendo anotações numas folhas de um dossiê.
A cena não passou desapercebida a alguns moradores do Largo,embora,por vezes aparecessem funcionários da Câmara em atitudes um tanto ou quanto semelhantes.A cena foi-se repetindo com intervalos de cerca de três dias e o enorme automóvel negro, imobilizado bem no centro do Largo ia, aos poucos,intrigando os moradores.
- Quem será o indivíduo? -perguntavam.
- Isto é homem da Câmara -respondiam outros - Só olha para os prédios e toma notas.
- Quanto a mim é um vigarista - disse João.
João era uma figura bastante típica das redondezas.Reformado de uma metalomecânica, falava pelos cotovelos.Em qualquer conversa entre amigos introduzia tantos assuntos sem qualquer ligação entre si que a páginas tantas havia quem se irritasse.À noite frequentava a zona do Cais do Sodré onde travava conhecimento,por vezes,com pessoas cultas, sem rumo na vida,que eram a sua fonte de pretensos conhecimentos elevados.Muito arguto apanhava nomes e idéias citados por outros que, contudo, não sabia desenvolver.Lia toda a espécie de jornais e revistas que apanhava à mão,não lhe interessando se já eram antigos.Passados uns dois meses,quando o calor começou a apertar, os dois homens dirigiram-se pela primeira vez à cervejaria. Todos os olhares dos presentes incidiram sobre eles.
- Boas tardes.Arranja-me um gin tónico e uma cerveja aqui para o meu chofer,se faz o favor ?- pediu o homem da camisa alva.O proprietário desfez-se em sorrisos e serviu-os solícito, ansiando por meter conversa,saber quem eram e o que faziam.Os seus intentos sairam contudo frustrados pois os dois homens afastaram-se um pouco do balcão e mantiveram uma conversa reservada da qual o dono da cervejaria,o Senhor Antunes,só percebeu que falavam em prédios e em muitos milhares de contos.
Dias mais tarde os dois homens dirigiram-se à cervejaria:
- Ainda se pode almoçar?-Perante a anuência de Antunes o homem voltando-se para o chofer disse:
- José, vem buscar-me daqui a umas duas horas.
-Fique descansado senhor engenheiro.
Antunes rejubilou;o homem era engenheiro,tinha um carrão e chofer.Foi a partir daí que as visitas ao Largo se tornaram diárias.O engenheiro almoçava e à tarde o chofer vinha buscá-lo.
-Almoço sempre tarde. Tenho uma vida em que não paro.Compro prédios, construo, vendo-os...Há aqui alguns para venda?- perguntava e Antunes respondia o que sabia e o que não sabia.Um homem de negócios daquele gabarito,tão bom cliente,que só falava em milhares de contos enchia-o de vaidade.- Vou comprar aqui próximo um andar para instalar um escritório. Trarei depois algum pessoal do outro escritório - dizia o engenheiro. - Mas é perto de Penedono e em Bragança que estou a construir em grande. É aí que de momento estou a investir forte.
A convivência quase diária entre o engenheiro e Antunes ia estabelecendo uma crescente simpatia deste por aquele.Tentava servi-lo com o melhor peixe e carne que encontrava; com várias variedades de queijo e de vinhos.
-O Senhor Engenheiro é engenheiro...Tem alguma especialidade,digamos?
- Civil. Sou engenheiro civil,tirei o curso no Instituto Superior Técnico.Daí estar ligado à construção. Lembre-se do meu colega,o grande Duarte Pacheco- e riu-se.
Os almoços eram caros. Eram pagos pouco antes do chofêr chegar, sempre com notas grandes.Um dia pareceu atrapalhado.- Oh, Diabo ! Querem lá ver que perdi a carteira ?!
-Por amor de Deus ! Não se preocupe- disse Antunes.
José chegou pouco depois com a carteira na mão: -Ficou no carro- disse.A partir daí,e já tinham decorrido cerca de quatro meses desde o primeiro almoço, o engenheiro propôs a Antunes:
-Senhor Antunes,para eu não andar preocupado com a carteira, com dinheiro, o senhor importava-se que eu passasse a pagar ao mês ?Até posso pagar adiantado e depois acerta-se...- A idéia não desagradou a Antunes; perder um cliente daqueles é que não.
-Tu nem sabes o nome do homem e vais nisso? -disse-lhe a esposa.
João que ouvira a conversa não se conteve:- Senhor Antunes,então você não vê que o homem tem pinta de vígaro ?
- Tem o quê ?Devias respeitar os cabelos brancos da pessoa.Não vês que é um homem de grandes negócios?Anda sempre com um dossiê debaixo do braço...
-Você já viu o que contém o dossiê?-contrapôs João - Naturalmente contém fotografias de gajas nuas - acrescentou rindo a bom rir.
Um dia Antunes perguntou:- Senhor Engenheiro, qual é a sua graça? Desculpe fazer-lhe esta pergunta.mas às vezes até podem vir à sua procura...
-Souto Queiroz,um seu criado...
-Tem pinta de engenheiro e nome de engenheiro -disse Antunes à esposa - anda sempre a tomar notas...Lá no Norte tem cada empreendimento...
Nos dois meses que se seguiram os almoços foram pagos impreterivelmente no último dia de cada mês, sempre a dinheiro.
-É cumpridor - disse Antunes- sempre notinhas...
-Paga a dinheiro porque está proibido de passar cheques - afirmou João.
-Lá está você a atirar abaixo as pessoas.Que raio de feitio !
No fim do mês seguinte ninguém apareceu para pagar os almoços e durante dez dias tanto José como o engenheiro não deram sinal de si.
-Enfiaste a ursada !-disse João- Eu sempre desconfiei do tipo. Mas qual engenheiro,qual carapuça !
Antunes limitava-se a sorrir com um sorriso amarelo.Tinha confiado em demasia.Numa manhã José apareceu:- Peço imensa desculpa,Senhor Antunes por esta ausência,mas tivemos de ir para o Norte sem esperar. E, como sabe,não se podem perder milhares...Em nome do meu patrão,mil desculpas.
Antunes invectivou a mulher e todos aqueles que tinham posto em causa a honestidade do engenheiro.Este após ter voltado anunciou ter montado escritório em Algés de Cima mas continuaria fiel a Antunes.Requintou os seus gostos,os almoços eram cada vez mais caros e numa altura em que por uma série de curtas ausências e de pequenos desencontros já devia três meses de refeições telefonou a Antunes dizendo que se encontrava no Brasil;inesperadamente teve de ausentar-se.Grandes empreendimentos no Rio Grande do Sul precisavam da sua presença.Pedia desculpa e solicitava que José passasse a almoçar em vez dele.Quando regressasse liquidaria todas as despesas.
José mostrou-se mais exigente do que o patrão quer na qualidade da comida quer na dos vinhos.Foram dois meses em que parecia que o verdadeiro patrão era José.
-O seu patrão vai demorar-se muito? Está a investir,não? -perguntava Antunes.
-No Rio Grande do Sul e também nos arredores de São Paulo.Coisa de muitos milhões.Levou daqui dois economistas e um advogado.Muitos milhões,muitos milhões- explicou José.
De milhões não foi o calote do Engenheiro a Antunes, mas a dívida foi suficientemente grande para este amaldiçoar o dia em que,numa tarde de muito sol,um grande carro preto entrou no Largo,através do Arco histórico,parou a meio e dele saiu um homem de camisa muito branca,com um dossiê debaixo do braço...
Publicado na revista Pessoas Nº17, Março 2005
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