sábado, 22 de agosto de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS ( V )

NA MORTE DE UM AMIGO

Armando era mecânico de automóveis. Nunca se adaptou a trabalhar em oficinas.Sempre o conheci a arranjar os automóveis,no largo, em frente de sua casa. Quando alguém indagava por um mecânico a indicação que recebia era invariavelmente: - Procure o Armando.
A sua figura era característica,alto,magro,boina na cabeça,fato de ganga azul,botas pretas; mesmo nos fins de semana era raro vê-lo vestido de outra forma.
Era o único mecânico de motores de iates que demandavam a Doca do BOM Sucesso.Se Armando não estava em pleno largo, de volta de um automóvel, era certo que se encontrava na doca, a trabalhar para os "camones", como dizia.
Ao longo dos anos os nossos contactos resumiram-se a pouco mais do que : - " Está lá, Armando ? O meu carro não pega..."
- "Vou já aí "- era sempre a resposta.
-" Armando, preciso que me leves o carro à inspecção".
-"Vou já aí".
Nunca trocámos muitas palavras para além das circunstanciais;contudo,ao longo dos anos foi-se estabelecendo uma forte empatia entre nós. No nosso íntimo sabiamos que eramos bastante amigos. Em Maio ouvi novamente:-"Vou já aí". Mas desta vez Armando acrescentou: -"Se for preciso arranjar o carro antes da inspecção,não o poderei fazer. Isto é uma porra, cada vez estou mais magro ! Levo-o só à inspecção".Passados três dias uma filha minha solicitou-lhe o mesmo.- " O Armando não pode mais trabalhar,nem sequer levar só o carro à inspecção" - disse a mulher
-" Como ele levou o carro do meu pai à inspecção,pensei que..."
-" Levou o carro à inspecção mas fê-lo por grande amizade para com o seu pai,pois na altura já não tinha forças. Compreenda,está a emagrecer imenso. Cancro no fígado".

Passados dias deu entrada num hospital;pouco depois veio para casa.- "O médico disse que não há nada a fazer ! Estava a ocupar uma cama...".
Fui visitá-lo a casa.Ainda me reconheceu: - Luis,ajuda-me a pôr o corpo noutra posição". O contacto das minhas mãos com o seu corpo onde já quase se não notava carne foi uma sensação terrível.Ali estava o meu amigo Armando a poucos dias do fim.
Numa época onde impera a crescente competição entre as pessoas, o egoismo, o "salve-se quem puder", é gratificante constactar que ainda pode existir grande amizade entre as pessoas ao ouvir a mulher dizer :-" Ele tinha dito que era o último jeito que lhe queria fazer antes de morrer ".
O meu amigo Armando já faleceu há alguns meses, mas ainda hoje me comovo quando penso que já não é possível marcar o seu número de telefone e ouvir do outro lado:"Vou já aí".

Publicado na Suiça,no nº l6 da revista " Pessoas" em Dezembro de 2OO4.

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