quarta-feira, 1 de abril de 2009

AS MINHAS HISTÓRIAS ( I )

LEITE COM TORRADINHAS

Aristides Inocêncio teve uma infância feliz: seu pai chegou a ser presidente da Câmara Municipal de uma vila do interior,durante vários anos,no tempo em que não era permitida a existência de partidos políticos,constando que a vida abastada que a sua família levava era devida aos anos em que seu pai dispusera da Câmara a seu belo prazer,sem oposição fiscalizadora.
Estando o presidente muito ligado às autoridades representativas,Igreja e forças de ordem,ninguém ousava levantar a voz sobre os boatos que por vezes circulavam quanto à sua honestidade à frente da edilidade,tanto mais que,dizia-se,um seu cunhado,residente em Lisboa,era figura de destaque da polícia política do regime.
Na vila,Aristides era um pequeno príncipe,mimado por muita gente.
Quando terminou a quarta classe,ao contrário do que seria de esperar,o pai encaminhou-o para a escola industrial e, uma vez esta terminada, enviou-o para França onde frequentou e concluiu um curso médio no ramo da engenharia.Por influência materna Aristides aperfeiçoou-se na língua francesa e após estágios em fábricas começou a trabalhar numa enpresa nos arredores de Paris.
Tendo-se livrado de prestar serviço militar,foi permanecendo em França e só após muita insistência da família decidiu regressar a Portugal. Contudo,os anos passados
fora tinham-lhe alterado a sua maneira de ser e aos pais surgiu-lhes um Aristides com hábitos diferentes e mentalidade liberal para a época,casado com uma francesa e disposto a seguir a sua própria vida.
Rumou a Lisboa,instalou-se com Marie,sua esposa,perto da Torre de Belém e procurou emprego.Não teve qualquer dificuldade de maior dada a sólida experiência adquirida no estrangeiro e o domínio da língua francesa,começando a trabalhar numa empresa situada na Azambuja. Habituada a trabalhar desde nova, Marie arranjou igualmente emprego.
Naquele tempo a presença de uma estrangeira numa localidade era motivo de grande curiosidade.Saber quem era,quem não era, ocupava largo tempo no dia a dia das pessoas até se descobrir a sua origem e actividade.Perto da casa de Aristides ficava a Avenida da Torre de Belém e nesta, junto à linha dos eléctricos, um café paredes meias com um cinema,hoje já desaparecido. Todas as noites a esplanada do café enchia-se de pessoas que,após o jantar,procuravam a cavaqueira até cerca da meia-noite e outras dezenas enchiam o café antes de se dirigirem ao cinema.
Se na esplanada havia imensa gente despreocupada que ria e comentava factos das suas vidas,assim como outros,havia igualmente uns tantos rapazes cujo único entretenimento era o de apreciar as raparigas e algumas senhoras que se dirigiam ao cinema.
Duas ou três vezes na semana Marie surgia,vinda da rua onde morava, de cafereira na mão,entrava no café e saía,dirigindo-se para as traseiras do cinema,para voltar cerca de meia-hora depos.
Não tardou que os "abutres" se apercebessem do estranho hábito de Marie e uma noite a seguissem de forma discreta.Viram-na entrar para um automóvel estacionado em local escuro e lançar-se nos braços de um homem que a aguardava. A partir daquele dia,logo que Marie surgia à esquina da rua,os rapazes apressavam-se em direcção às traseiras do cinema.
No Verão Aristides costumava passar pela Doca do Bom Sucesso antes de se dirigir a casa,vindo da Azambuja.Gostava de dar uns dedos de conversa a um grupo de homens que se reuniam habitualmente junto de uma das muralhas.
Num desses dias ficou a saber-se que uma cor de um azulado ténue que Aristides exibia nos lábios era devida a uma insuficiência de alguma gravidade numa válvula do seu coração.
- Os médicos aconselharam-me a não jantar como costumava fazer - contou- já há vários meses que a minha mulher, coitada, faz o sacrifício de ir à noite ao café buscar um leite muito bom que eles lá têm. A chatice é que tem de esperar largos minutos até que a atendam, pois é à hora do cinema começar. Quando chega a casa prepara-me leite com torradinhas e é esse o meu jantar. Já me prontifiquei a ir buscar o leite mas ela não quere que eu saia à noite, que me canse ou constipe.
Certa noite, ao chegar a casa com o leite e após ter demorado mais do que o habitual, Marie verificou que Aristides já preparara algum leite com a intenção de jantar. A televisão encontrava-se ligada; no tabuleiro colocado sobre uma pequena mesa em frente do aparelho só faltava o açúcar. Na cozinha,caído no chão,já sem vida,encontrava-se o corpo do marido.
Aristides nunca mais tomaria o seu leite com torradinhas.

Luis Florêncio Oliveira
Verão de 2OO4

P.S.-Esta história foi publicada na revista Pessoas que se publicava em Genebra,Suiça,no nº l5 de Setembro de 2OO4.

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